sexta-feira, 10 de junho de 2011

A loucura como mecanismo de exclusão

A loucura como mecanismo de exclusão

Felicidade nas telas - A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade

Abaixo transcrição de um artigo  da folha, embora não seja nada relacionado a Foucault, vale a pena ler essa reflexão.
O artigo foi publicado em 20 de setembro de 2010.

Felicidade nas telas
CONTARDO CALLIGARIS



UMA AMIGA inventou um jeito de curtir sua fossa. Depois de um dia de trabalho, de volta em casa, ela se enfia na cama, abre seu laptop e entra no Facebook.

Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite, como disse, para curtir sua fossa. De que forma?

Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar, renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo "job" fantasticamente interessante. E todos vivem essas bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos, alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias postadas.

Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte.

Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga estava numa época de grandes realizações e contentamentos. Ela comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria; elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".

Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não deveríamos nos queixar disso.

Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.

Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo) culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas de nossa insatisfação.

Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida com o tédio de viver do que com a falta de gratificação? Em suma, você é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque parou de querer, e isso torna a vida muito chata?

Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?

1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima sensação de bem-estar;
2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.

O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.

ccalligari@uol.com.br

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2309201026.htm

segunda-feira, 6 de junho de 2011

As viagens de Foucault ao Brasil

Abaixo segue a transcrição integral da reportagem da folha sobre Foucault em 22/05/2011.

As viagens de Foucault ao Brasil


RAFAEL CARIELLO
DE SÃO PAULO

"Foucault corrompe a juventude?", pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, "corrompeu a juventude" do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.

Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, "famintos por aprender". As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.

Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.

Reprodução
O filósofo Michel Foucault
O filósofo Michel Foucault

Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do "Banquete", despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.

DESCONFORTO

O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia "Freud e Marx ao infinito", como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de "ingenuidade" e "idealismo". Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.

Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. "O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente."

Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um "objeto primeiro" para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso "primordial, essencial, fundamental".

O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. "Ele mostra o fenômeno 'hospitalício'", disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. "As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe".

"Compreendo", respondeu Foucault. "Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom."

DITADURA

Há poucos registros de críticas públicas do autor de "Vigiar e Punir" à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. "Ele nunca foi um provocador inconsequente", argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. "Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível."

Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade "contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas". A reportagem registra que o "professor Michel Foucault, psicólogo francês" compareceu à assembleia e fez "um pronunciamento de solidariedade aos estudantes". Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.

Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.

Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.

PROVOCAR Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.

Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). "Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores" das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista "Transformação", da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"Eu disse: 'Não dou a relação'. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado".

À VONTADE

Uma relação de "afinidade eletiva" ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.

O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro "para onde a garotada da zona sul ainda não ia", no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: "Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?".

As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como "mulato, relativamente bonito".

Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.

CALIFÓRNIA

E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.

Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. "Acho que foi o encontro com os Estados Unidos", explica Machado.

"Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas."



Link da reportagem original:http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/918570-as-viagens-de-foucault-ao-brasil.shtml